“Simplex Urbanístico” - maior desburocratização dos procedimentos administrativos ou maior risco ao nível da segurança jurídica?

08-02-2024
Patrfícia Maravilha -solicitadora

Patrícia Maravilha

Solicitadora
Foi publicado, no passado dia 8 de janeiro, o Decreto-Lei n.º 10/2024, que procede à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria (o “SIMPLEX”). A grande maioria das 26 medidas, que trazem alterações em matéria de licenciamento urbanístico, entram em vigor no próximo dia 4 de março, mas algumas delas já começaram a surtir efeitos desde 1 de janeiro de 2024.
 
Este diploma faz parte do pacote de medidas do programa “Mais Habitação”, aprovado em Conselho de Ministros no mês de outubro do transato ano.
O novo Decreto-lei vem, fundamentalmente, facilitar e agilizar os procedimentos de controlo prévio urbanístico e de ordenamento do território, nomeadamente ao nível do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE), do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) e da simplificação da compra e venda de imóveis. Para tanto, deixam de ser exigidas licenças, autorizações e outros procedimentos burocráticos, de forma a criar uma maior dinâmica no mercado e consequentemente aumentar a oferta de habitação. A título de exemplo, será dispensada a necessidade de licenciamento de obras que aumentam o número de pisos, desde que não seja alterada a fachada do imóvel.
 
O Simplex Urbanístico reúne várias alterações legislativas, em vários diplomas, nomeadamente a Lei de Bases dos Solos, do Ordenamento do Território e do Urbanismo, o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) e o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, o Código Civil, entre outros. Contudo, o grande foco deste novo diploma centra-se, sobretudo, na simplificação dos procedimentos urbanísticos e de ordenamento do território, destacando- se, entre outras, as seguintes medidas:
 
  • Desde 1 de janeiro deste ano, encontra-se a vigorar uma das medidas mais polémicas deste diploma e que se prende com o facto de a apresentação das autorizações de utilização e das fichas técnicas de habitação nos atos de transmissão da propriedade deixar de ser obrigatória. Deste modo, nos atos de transmissão de prédios urbanos, os notários e outros profissionais com competência para a outorga de escrituras públicas e a elaboração de documentos particulares autenticados (advogados e solicitadores), têm o dever de informar que os prédios urbanos podem não dispor dos títulos de construção e de utilização necessários e obrigatórios.

  • Isenção ou dispensa de licenças urbanísticas (em vigor a partir de 4.3.2024): deixa de ser possível optar pelo regime da licença quando o procedimento da comunicação prévia é o aplicável; a operação de loteamento passa a estar sujeita a comunicação prévia quando exista plano de pormenor ou unidade de execução com determinadas características; são alargadas as operações urbanísticas que passam a estar isentas de controlo prévio, designadamente quando as obras de edificação prevejam o aumento do número de pisos, sem que haja alteração da fachada e não afetem a estrutura de estabilidade; são ainda alargados os casos de isenção de controlo prévio relativos a operações urbanísticas promovidas por empresas do setor empresarial do Estado, empresas municipais ou intermunicipais relativas à instalação de serviços públicos, nomeadamente para habitação, incluindo residências de estudantes (entre outros), vão dispensar licenças urbanísticas, ficando estas sujeitas apenas à emissão de um parecer não vinculativo pelo município competente.

  • Simplificação dos procedimentos administrativos (em vigor a partir de 4.3.2024, mas não se aplica aos procedimentos em curso): Aprovação de um regime de deferimento tácito que poderá permitir aos particulares iniciar as obras quando as decisões das licenças de construção não tiverem sido tomadas nos prazos devidos para a emissão das licenças, contados desde a data da apresentação dos pedidos; O “alvará de licença de construção” e o “alvará de licença de utilização”; são agora substituídos pelo recibo de pagamento das taxas legalmente devidas.

  • Eliminação de algumas exigências em matéria de controlo prévio urbanístico (em vigor a partir de 1.1.2024): Revogação ou substituição de certas exigências do RGEU como por exemplo, eliminação da obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho; Eliminação da necessidade de obtenção de uma licença específica para ocupação do espaço público e que se revela frequentemente necessária para as obras quando é fundamental, por exemplo, utilizar caixas de entulho ou andaimes; a presença de forças e serviços de segurança nas obras passa a ser facultativa;

  • Simplificação de processos em matéria de ordenamento do território (em vigor a partir de 4.3.2024): Será simplificado o processo de reclassificação de solo rústico para solo urbano, com finalidade industrial, de armazenagem, logística ou habitação a custos controlados. No entanto, este processo só será possível quando o espaço não se localize em áreas sensíveis, na Reserva Ecológica Nacional (REN) ou na Reserva Agrícola Nacional (RAN).

  • Reconversão de imóveis comerciais para habitação facilitada (sem deliberação do condomínio): o novo diploma legal alterou as regras do Código Civil relativas à propriedade horizontal, determinando que a alteração do fim ou do uso a que se destina cada fração para habitação não carece de autorização dos restantes condóminos. Esta alteração constitui uma exceção à regra prevista no Código Civil, desde janeiro de 1995, segundo a qual, sempre que o título constitutivo não disponha sobre o fim de cada fração autónoma, a alteração ao seu uso carece da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio.

  • Criação de uma Plataforma Eletrónica dos Procedimentos Urbanísticos: A plataforma será de utilização obrigatória para todos os municípios a partir de 5 de janeiro de 2026 e não será possível adotar passos procedimentais ou documentos que nela não se encontrem previstos. Assim, a plataforma permitirá: apresentar os pedidos online; consultar o estado dos processos e prazos; receber notificações eletrónicas; obter certidões de isenção de procedimentos urbanísticos; uniformizar procedimentos e documentos exigidos pelos municípios, evitando a multiplicação de práticas e procedimentos diferentes;

Apesar do novo diploma legal trazer vantagens imediatas, nomeadamente no que toca a uma maior celeridade no desenvolvimento das operações urbanísticas e na redução de custos, em virtude da menor carga burocrática, a verdade é que este poderá vir a acarretar alguns riscos de segurança jurídica, no que toca à outorga de escritura de aquisição de um imóvel: comprar uma casa ilegal (ou com obras ilegais); comprar uma casa que não cumpre as regras de construção e segurança; comprar uma casa sem licença compromete a contratualização do crédito habitação; a venda da casa no futuro, sem licença, será um processo mais complexo e com potencial desvalorização;

O deferimento tácito e a ausência de um código da edificação, aliados à carência de técnicos qualificados, pode levar a um aumento de litigância resultante de eventuais situações em que, após as transações, venham a ser invocadas pelo município ou pelo Ministério Público ou detetadas pelo adquirente ilegalidades e/ou desconformidades técnicas.
 
A ver vamos se, futuramente, estas alterações legais conseguirão conciliar, por um lado, a celeridade dos procedimentos e, por outro lado, a proteção dos direitos dos particulares.